A História e o Património Arquitectónico portugueses, sobretudo durante a Epopeia dos Descobrimentos, encontram-se directamente ligados à escravatura, tendo Portugal desempenhado papel de relevo no comércio de escravos, dando início ao que seria designado de ciclo da Guiné, o primeiro do tráfico negreiro, quando a partir de 1432 Gil Eannes terá trazido para Lisboa as primeiras levas de escravos. O comércio de escravos, inicialmente destinado a fins domésticos, era prática usual dos mercadores portugueses tendo a Coroa criado a Casa dos Escravos, em Lisboa, para organizar o negócio.
Em 1444 teve lugar o primeiro carregamento de escravos (num total de 235) de iniciativa privada, trazidos do Golfo de Arguim pelo Almoxarife de Lagos, Lançarote de Freitas, sendo então realizado, na presença do Infante D. Henrique, o primeiro leilão de escravos do Algarve; a venda de cativos terá tido lugar no Mercado de Escravos em Lagos (cujo edifício é hoje um dos mais representativos da cidade) que viria a constituir uma poderosa máquina de negócio de exportação de escravos sobretudo para Sevilha, Cádiz e Valencia.
Lançarote de Freitas seria um dos descobridores da ilha de Gorée no Senegal que durante os Séculos XV e XVI se tornou um dos maiores centros de comércio de escravos do continente, a partir de uma feitoria fundada pelos portugueses e na qual em 1536 estes construíram uma Casa de Escravos.
A presença de escravos no quotidiano português é então lugar comum, como testemunha a instalação no Bombarral, em 1480, da família Cunha e Coimbra, conhecidos contratadores que se dedicavam ao mercado negreiro, importante na economia local. Ou a edificação por D. Manuel I, em 1513, de Vila Nova de Santo António de Arenilha (Vila-Real de Santo-António) com o objectivo de povoar e controlar o contrabando de mercadorias, escravos e dinheiro. O mesmo monarca mandou construir, em Almeirim, o Paço dos Negros da Ribeira de Muge, cuja designação se deve ao facto de D. Manuel ter para aí enviado alguns escravos negros.
Em meados do Séc. XVI, Lisboa abrigava quase 10 mil escravos, constituindo estes cerca de 10% da sua população. O Chafariz de São João documenta esta realidade tendo, em 1551, o Senado da Câmara publicado uma postura regulando a serventia das várias bicas do chafariz, uma das quais se destinava exclusivamente a cântaros, cantarinhas, quartas, odres, barricas e pipas dos escravos. No Funchal sobrevive ainda a Capela da Penha, escavada na rocha, que terá sido um antigo refúgio de escravos canários.
Em Vila Viçosa as comunidades da confraria de Nossa Senhora do Rosário, instituída por volta de 1571 e instalada na Santa Casa da Misericórdia e no Convento das Chagas, incluíam escravos negros; muitos deles serviam no Paço Ducal, possuindo D. Teodósio I, Duque de Brangança, 36 escravos, como estudado por Jorge Fonseca e documenta a referência a “uma gola mui bem feita de deitar no pescoço aos escravos” presente no Inventário da Casa de Armas do Castelo, levantado em 1757.
Segundo José Luís Assis, na 2ª metade do Séc. XVI em Portugal, a maioria dos escravos concentrava-se no Algarve, seguindo-se o Baixo Alentejo, o Vale do Tejo e o Distrito de Évora. No Séc. XVII, o número de escravos diminui acentuadamente dado o desvio do tráfico negreiro para as plantações de açúcar no Brasil.
Nos finais do Séc. XVI, em Paraty, no Rio de Janeiro, o motor da economia assentava na produção do açúcar em larga escala, o que exigia abundante mão-de-obra, sendo a região um importante pólo na captura e escravatura de indígenas.
Assim, ao ciclo da Guiné seguiram-se, dedicados à exportação de cativos provenientes da costa africana para o Brasil, os ciclos de Angola e do Congo no Séc. XVII e, até 1770, o da Costa da Mina. Em Santana de Parnaíba o formato e o tamanho das telhas de capa e canal, utilizadas na maioria das casas, são atribuídos ao facto de terem sido moldadas sobre as coxas dos escravos.
Nos Séc. XVII e XVIII são frequentes as referências a escravos a servir em casas de família, sendo distinguidos dos criados: em Lisboa, na Casa da Quinta das Torres, na Buraca, residiam “2 criados e 2 escravos”; na Quinta da Fonte do Calhariz em Benfica “3 criados e 4 escravos” e no Palácio Foz “seis criados e vários escravos”. Estes escravos não se limitavam a fins domésticos, encontrando-se igualmente documentada a sua presença na construção e decoração de vários edifícios como no Convento e Igreja da Graça em Évora cujo pórtico foi integralmente executado por escravos.
A partir de 1761, os escravos vão desaparecendo progressivamente do país, muitos voltando para a África ou seguindo, à força, para o Brasil. O ciclo da baía de Benin encerrará o comércio de escravos que se prolongou até 1850, tendo a escravatura sido abolida em Portugal apenas em 1876.
Para mais informações sobre o património referido ver:
- Praça do Comércio
- Mercado de Escravos, em Lagos
- Ilha de Gorée, Senegal
- Casa dos Escravos na Ilha de Gorée
- Núcleo Urbano da Vila do Bombarral, Leiria
- Núcleo Pombalino de Vila Real de Santo António
- Paço dos Negros da Ribeira de Muge, Almeirim
- Chafariz de São João, Lisboa
- Capela da Penha, Funchal
- Igreja e Hospital da Misericórdia, Vila Viçosa
- Igreja e Convento das Chagas, Vila Viçosa
- Paço Ducal de Vila Viçosa
- Castelo de Vila Viçosa
- Centro Histórico de Paraty, Brasil
- Centro Histórico de Santana de Parnaíba, Brasil
- Casa da Quinta das Torres, Lisboa
- Quinta da Fonte do Calhariz, Lisboa
- Palácio Foz, Lisboa
- Igreja e Convento da Graça, Évora
Sobre a presença de escravos em Vila Viçosa e no Alentejo em geral, consulte-se:
- ASSIS, José Luís, “Subsídios para o Estudo da Escravatura no Concelho de Alcácer do Sal”, Neptuno on-line, nº 3, Alcácer do Sal, Associação de Defesa do Património Cultural de Alcácer do Sal, Janeiro-Março, 2005.
- FONSECA, Jorge, Escravos em Évora no século XVI, Évora, Câmara Municipal de Évora, 1997.
- IDEM, “Escravos em Vila Viçosa”, Callipole, nº 5-6, Vila Viçosa, CMVV, 1997/1998, pp.25–50.
- IDEM, "Escravatura moderna no sul de Portugal - uma investigação em curso", Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, n° 1 - 12, 2001.
- IDEM, Senhores e Escravos no Alentejo, Ler História, nº 43, 2002, pp. 39–55.
- IDEM, “Os escravos de D. Teodósio I duque de Bragança”, Callipole, nº 13, Vila Viçosa, CMVV, 2005, pp. 45-53.
- GORDALINA, Maria do Rosário, “Alguns documentos relativos à Casa de Arma do Castelo de Vila Viçosa”, Monumentos, nº 27, Lisboa, IHRU, Dezembro, 2007, pp. 44-51.
Sobre Portugal o o tráfico negreiro, consulte-se:
- ALMEIDA, Pedro Ramos de, Portugal e a Escravatura em África - Cronologia do séc. XV ao séc. XX, Lisboa, Estampa, 1978.